A frase “NAVEGAR É PRECISO VIVER NÃO É PRECISO”, imortalizada por Fernando Pessoa, mesmo não sendo de sua autoria, pode muito bem ser adaptada ao atual contexto de discussão da Medida Provisória 1031/2021, denominada pelo mercado como MP da Eletrobrás.
Com o pretexto de privatização da empresa, fato há muitos anos esperado pelo setor, foram incluídos dispositivos na Câmara dos Deputados, estranhos à MP original encaminhada pelo Governo, que afrontam as regras de mercado, e se configuram em mais uma intervenção brutal no setor elétrico.
A privatização da Eletrobrás (ou capitalização como se queira chamar o processo) deveria ter sido finalizada ainda no governo Fernando Henrique Cardoso, quando foi iniciada com a privatização da Eletrosul, cujo leilão foi realizado em 15 de setembro de 1998, na Bolsa de Valores do Rio de Janeiro, marcando a privatização da primeira geradora de grande porte do país, mas a menor das quatro empresas da Eletrobrás à época, com uma capacidade instalada de 3.222 megawatts.
Mas o processo de privatização da Eletrobrás foi interrompido, devido à forte resistência política contra a privatização de Furnas, Chesf e Eletronorte, que respondem com cerca de 30% da capacidade de geração do país, e são até o momento empresas estatais, convivendo como estranhos no ninho com o maciço avanço dos investimentos privados na implementação de nova geração de energia no país.
Em 2013, a Eletrobrás sofreu um grande revés em suas finanças e capacidade de investimentos, quando as suas usinas hidrelétricas tiveram seus contratos de concessão renovados sob regime de cotas, como consequência dos dispositivos da MP 579, que implantou medidas do governo para baixar as tarifas de eletricidade. Como se sabe, esta MP não somente representou uma intervenção desastrada no setor elétrico como também levou ao tarifaço em 2015, onerando todos os consumidores de energia no país.
Em 2021, o Senado Federal tem em suas mãos a responsabilidade de avaliar as alterações propostas pela Câmara e decidir o futuro de um dos maiores ativos estatais atualmente em operação no Brasil.
Há praticamente um raro consenso no setor, que abrange todos os segmentos de negócios e os grandes consumidores de energia, contrário a estas alterações e ao texto que está em análise e debate no Senado.
Tento enumerar a seguir, em forma itemizada e não exaustiva, alguns dos principais pontos de atenção na MP, com breves comentários para reflexão, e que sejam somados aos competentes argumentos já utilizados por agentes, consultores e associações representativas dos maiores segmentos de negócios do setor. São eles:
- A Eletrobrás é um ativo estratégico para o setor elétrico, mas este fato não deve ser motivo para que não seja privatizada. Os recursos para a expansão da oferta de energia atualmente feita através dos contratos nos leilões regulados ou através do mercado livre de energia são majoritariamente privados, e o governo deter o controle estatal da empresa somente levará a continuidade da queda de market-share no mercado, e na atual incapacidade de investimentos novos da empresa. Geração de energia com investimentos e gestão privados e regulação eficiente por parte do Estado, são suficientes para manter a competição e a eficiência do setor, sem viés ideológico de manter a empresa sob controle estatal;
- Ativos onde pode haver discussão sobre se devem ser privados, como Itaipu e Eletronuclear, permanecerão em uma empresa estatal;
- A obrigação de contratação de 6.000 MW de usinas termelétricas movidas a gás natural, previsto na MP, sem processo competitivo prévio, em locais onde não há gasodutos nem demanda suficiente para absorver esta geração, representa um retrocesso inaceitável nas regras de contratação de energia, que são competitivas e estão sendo aperfeiçoadas através de grande esforço das instituições e dos agentes ao longo dos últimos anos. Nem sequer servirão para o objetivo de substituir térmicas a óleo combustível e diesel, mais caras e poluente, pois o próprio governo prevê a realização dos leilões A-4 e A-5 de energia existentes, que ocorrerão em 2021, com o objetivo de contratar usinas a gás natural em processo competitivo para substituir as atuais usinas a óleo que estão com contratos de venda de energia finalizando em 2024 e 2025;
- A construção destas usinas levará ao absurdo de se construir gasodutos com investimentos milionários e na sequência construir linhas de transmissão com altos investimentos para escoar a energia gerada para os centros de consumo. Se concretizado, este fato certamente virará chacota internacional de como se faz para gastar mal os recursos aplicados, sem qualquer prioridade ou racionalidade econômica, em prejuízo dos consumidores finais de energia;
- Da mesma forma, a reserva de mercado para contratação de 2.000 MW de Pequenas Centrais Hidrelétricas – PCH, sem considerar competição com outras fontes, impactará as tarifas de forma desnecessária e inoportuna;
- Outra grande aberração é a tentativa de prorrogar os contratos do PROINFA por 20 anos. Este programa teve o louvável objetivo de incentivar fontes renováveis, que em 2002 quando foi idealizado, ainda não tinham competitividade perante as fontes tradicionais de geração. Assim, o governo contratou cerca de 3.000 MW proveniente de fontes eólicas, PCH e biomassa. Conforme informações disponibilizadas pela ANEEL, o PROINFA custará aos consumidores cerca de R$ 4 bilhões nas tarifas de energia somente em 2021, a um custo médio de R$ 361,07/MWh. Qual o motivo de prorrogar um programa que já cumpriu seu papel e que tem custos muito superiores aos atualmente obtidos em leilões regulados (o leilão de energia nova A-6 mais recente, realizado em 2019, resultou em um preço médio final de R$ 176,08/MWh, sendo que as fontes eólicas e solar foram negociadas com preços inferiores a R$ 100/MWh). Lembro também que tais fontes não precisam mais de subsídios nas tarifas, pois conseguem se competitivas, com a evolução tecnologia. Os subsídios nas tarifas de uso da rede que estas fontes possuem desaparecerão a partir de março de 2022 para novas outorgas, conforme prevê a Lei nº 14.120/2021.
- Utilizar os bônus de outorga para diminuir a Conta de Desenvolvimento Energético – CDE somente do mercado cativo é outro inaceitável dispositivo, pois fere a isonomia de mercado, e penaliza 33% do consumo de energia do país que se encontra no mercado livre.
Enfim, há diversos outros pontos de atenção na MP que devem ser combatidos de forma veemente pelo setor e pelos agentes e associações envolvidas.
As privatizações devem ser feitas e há provas contundentes no mercado do sucesso das privatizações já realizadas no país, seja pela eficiência de gestão e governança corporativa, como também pelo significativo pagamento de tributos que estas empresas proporcionam ao governo, muito maiores que quaisquer dividendos que pudessem pagar se estivessem ainda sob controle estatal.
No entanto, privatização deve ser eficaz para a economia e com regulação adequada pelo Estado para combater qualquer abuso. Neste caso da Eletrobrás, infelizmente o país se depara com um processo conduzido de forma inadequada e com ineficiência, impedindo a modernização de uma empresa que já deveria ser privada há mais de 20 anos, não fossem os interesses políticos e de grupos de influência que não permitem que isso aconteça.
É o momento de se perguntar se há mesmo interesse na privatização da Eletrobrás, dadas as enormes distorções introduzidas pela Câmara dos Deputados, que provocarão enorme intervenção e desorganização no planejamento, na operação e na comercialização de energia no setor elétrico brasileiro. Apoiar este processo significa condenar o setor e os consumidores a um atraso histórico, exatamente quando estão avançadas as discussões das novas regras de modernização e de aperfeiçoamentos do modelo de gestão do setor elétrico, no âmbito da própria Câmara dos Deputados, através do PL 414.
Melhor deixar caducar a MP da Eletrobrás e reiniciar o processo com um projeto adequado e no interesse do país. É mais uma oportunidade histórica perdida.
JOSÉ ANTONIO SORGE – SÓCIO ADMINISTRADOR DA COMERCIALIZADORA ÁGORA ENERGIA