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Que Mercado Queremos?

É de conhecimento amplo a situação atual do agente Água Paulista no âmbito da liquidação financeira do mercado de curto prazo, conforme pode ser observado em todas as notícias e matérias publicadas sobre o assunto, principalmente pelo Canal Energia.

A empresa apresentou insuficiência de lastro de energia e potência para cumprir com seus compromissos no mês de março de 2012, tendo havido a aplicação do mecanismo de “loss sharing” naquele mês, com rateio entre os credores.

Olhando friamente tal fato, pode-se concluir de maneira simplista que a empresa deve cumprir seus compromissos e ser punida com a aplicação de penalidades cabíveis e previstas nas regras e procedimentos de mercado e uma vez não cumprida com esta obrigação, desligada sumariamente da CCEE, e os seus débitos serem objeto de cobrança através de ação judicial movida pela própria Câmara em nome dos agentes envolvidos.

O Conselho da CCEE trabalhou intensivamente nos últimos anos juntamente com a ANEEL, para aprimorar as regras de mercado de forma que situações similares não voltem a ocorrer e que a Câmara tenha dispositivos à mão que coíbam tais fatos. Este esforço culminou com a publicação pela ANEEL das Resoluções 531/2012 e 545/2013, e que permitiram maior poder à CCEE para gerir e monitorar o aporte de garantias financeiras e os contratos registrados, bem como a aceleração dos processos de desligamento. São iniciativas que todos nós, que atuamos no mercado de energia, devemos aplaudir.

Volto ao caso de Água Paulista, pois considero-o emblemático para uma discussão mais aprofundada da aplicação das regras de mercado e o relacionamento dos agentes com a CCEE, podendo levar à uma discussão do próprio papel mais ativo de todos os agentes e da instituição CCEE no atual contexto do setor elétrico brasileiro.

A inadimplência de Água Paulista, em nossa opinião, não pode ser tratada friamente à letra das regras, sem que qualquer consideração adicional sobre as condições de contorno que levaram a esta situação também sejam levadas em conta.

Retomemos brevemente a fatos importantes ocorridos no final de 2011 e início de 2012, que culminaram com a situação vivida pela Água Paulista em março de 2012.

As Usinas do Grupo Bertin vencedoras do 6º. Leilão de Energia Nova, em conjunto com 27 distribuidoras representadas pela ABRADEE, propuseram em dezembro de 2011 à ANEEL, de forma pioneira e inédita no setor, uma redução temporária nos volumes contratados naquele leilão, tendo em  vista as largas sobras de energia existentes à época face à frustração do crescimento do consumo devido aos efeitos da crise econômico-financeira iniciada em 2008, imediatamente após a realização do 6º. Leilão.

A expectativa era que a Agencia pudesse julgar tal acordo em tempo hábil para os registros dos contratos referentes ao mês de janeiro de 2012 na CCEE, que ocorreria no início de fevereiro daquele ano.

No entanto, a ANEEL optou por abrir a Audiência Publica 081/2011, que ocorreu em duas etapas, tendo sido concluída em setembro de 2012, com o julgamento favorável do acordo proposto e que culminou com a publicação da Resolução 508/2012, que permite às distribuidoras e geradoras, em comum acordo, adotar mecanismos de mitigação de riscos na contratação de energia nova, o que não existia até aquele momento na regulação do setor.

Ou seja, a iniciativa do grupo Bertin e da ABRADEE foi reconhecida com pleno êxito pela ANEEL e permitiu avanço na regulação vigente. No entanto, para as usinas, dado o tempo transcorrido, a decisão não foi mais aplicável, pois as distribuidoras não ratificaram o acordo realizado cerca de 10 meses antes, dadas as alterações das condições de mercado e também face à edição da MP 579 pelo Governo Federal.

Portanto, as Usinas não disporiam mais de energia proveniente da recontabilização dos meses em que o acordo vigeu, e que permitirá cobrir a insuficiência de lastro de Agua Paulista através da recontabilização autorizada pela ANEEL.

A empresa, no seu legítimo direito de aguardar as decisões da ANEEL, recorreu à Justiça para suspender a exigibilidade do pagamento no âmbito do mercado de curto prazo, até que houvesse a conclusão do julgamento do acordo e que o histórico pudesse ser refeito com a remissão da inadimplência da empresa.

Uma vez que a redução temporária dos volumes contratados pelas distribuidoras não se concretizou, restou a inadimplência de Água Paulista a ser solucionada.

A empresa,  ciente de suas obrigações e reconhecendo o débito e a necessidade do saneamento do rateio imposto aos credores no mercado, mas sem condições financeiras de quitar à vista o seu débito pendente no valor de R$ 71 milhões, propôs a CCEE acordo factível para pagamento em 19 parcelas, sendo que 93% dos credores receberiam todos os seus créditos nos 4 primeiros meses de vigência do acordo.

A Água Paulista deu conhecimento deste acordo às associações ABRACEEL, APINE e ABRAGE, representante dos credores, como forma de demonstrar sua boa fé e disposição para sanar as pendencias de forma razoável e compatível com a situação financeira da empresa, tendo em vista os altos valores envolvidos.

No entanto, tal acordo não foi aceito pelo Conselho da CCEE que, adicionalmente, aplicou as penalidades por insuficiência de lastro de energia e potência conforme definidas nas regras da Câmara, adicionando um débito de R$ 152 milhões ao valor do principal devido pela Agua Paulista.

É neste ponto que gostaria de lançar algumas considerações para reflexão dos agentes e do mercado como um todo.

Em que pese o caráter exitoso das regras que visam disciplinar o funcionamento do mercado e o comportamento dos agentes, se há alternativas apresentadas de saneamento de problemas e pendencias que beneficiem os agentes envolvidos, qual a razão objetiva para que não sejam consideradas e aplicadas em benefício do mercado?

É o caso do acordo de pagamento proposto pela Água Paulista. Apesar de não ser à vista, devido à incapacidade de pagamento dado o valor vultuoso, a quitação da pendencia seria feita de forma parcelada com ganhos para todos envolvidos, evitando o desligamento do agente e despesas financeiras com ação judicial de cobrança com final imprevisível e incerto para a recuperação dos débitos. Pergunto, portanto, porque não aceitar tal proposta meritória de pagamento que daria previsibilidade de recebimento pelos credores, reconhecimento da boa fé do agente devedor e oportunidade de normalização de relações conflituosas no mercado de curto prazo?

Relativamente às penalidades aplicadas por insuficiência de lastro, de tal monta elevadas por se constituírem no dobro do valor original devido, é factível e razoável sua aplicação tendo em vista que a recontabilização não pode ser feita face à não ratificação do acordo de redução temporária dos contratos, e a Agua Paulista não pode refazer o histórico de registros? É obvio que aplicação de tais penalidades inviabilize todo o processo de pagamentos proposto e contribua para perpetuar a própria inadimplência da empresa no mercado, devido aos valores não factíveis e desproporcionais face ao principal controverso.

Utilizo este caso de Agua Paulista, não somente por ser parte envolvida como executivo da empresa, mas também para não perder a oportunidade de ressaltar aos agentes e à CCEE motivos e fatos concretos e atuais para refletirmos sobre a aplicabilidade dos regulamentos de forma não flexível e sem considerar o bem comum e interesses do mercado. Não estamos tratando de processos judiciais e criminais onde obrigatoriamente deve prevalecer os dispositivos legais previstos nas leis.

Estamos tratando de MERCADO, onde as condições e a dinâmica de negociação devem sempre ser buscadas de forma permanente, de forma a prevalecerem em busca do interesse comum deste mercado e seus agentes e instituições.

Devem as regras serem aplicadas estritamente à fria disposição do que está escrito, ou um diálogo mais amplo deve ser implementado, de forma que as situações atípicas ocorridas no mercado, e que felizmente são em pequeno número  face ao grande número de operações realizadas, possam ser discutidas visando permanentemente sua solução no interesse da maioria e com a consideração de todas as nuances e razões de cada caso?

Não se trata de proposição de julgamento com base em exceções, que são indesejáveis e apresentam riscos à justiça das próprias decisões, nem de insurgir-se contra as necessárias regras e procedimentos que devem existir e regular as atividades dos 2.600 agentes e quase 20.000 contratos registrados, mas de fazer prevalecer da forma mais democrática possível, o debate e a decisão final com base na vontade da maioria.

Esperamos que os fatos descritos e a argumentação aqui utilizada possam ter sido objetivos o suficiente para motivar a reflexão sobre este tema e o seu debate, no interesse do bem comum de todos os agentes que atuam no âmbito da CCEE, de forma que prevaleça o interesse maior do mercado mesmo que, em determinadas situações, através de acordo e não pela simples e fria aplicação de regras.

Os agentes atuantes no setor são, em última instancia, juntamente com os consumidores finais, a própria razão da existência do setor e de suas instituições, e sua vontade soberana é que deve prevalecer.