O tema volta à tona a cada oportunidade em que é registrado problema nas operações do ACL, dessa vez há uma convergência de opiniões de que o ambiente deve ser mais seguro até chegar à bolsa de energia
FONTE: MAURÍCIO GODOI, DA AGÊNCIA CANALENERGIA, DE SÃO PAULO (SP)
Quanto há algum problema no mercado vemos a retomada das discussões sobre as regras para a segurança das operações. Foi assim nos anos de 2008, 2012, 2019 e agora em 2021. O evento mais recente ainda repercute, tendo culminado com a recuperação judicial da Argon, no andamento de consulta pública na Agência Nacional de Energia Elétrica sobre segurança de mercado e, na semana passada, o envio de uma atualização da NT 3 da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica à Aneel, cujo objetivo é aproximar práticas do mercado financeiro do setor elétrico.
Apesar dessa situação, a liquidação financeira do mercado de curto prazo caminha, aparentemente, para a normalidade referente às operações de julho. Isso porque, depois de 2012, foram adotadas medidas que passaram a proteger os agentes não envolvidos em situações de default ou não registro de contratos. O problema fica apenas entre as contrapartes relativas aos acordos. Contudo, os dois eventos mais recentes suscitaram a necessidade de maior aprimoramento das regras.
E essa é uma visão unânime. No entanto, a forma de estabelecer o arcabouço para chegar à bolsa de energia, apontada como a solução ideal, é que ainda coloca os posicionamentos de agentes em diferentes lados. Em comum, a avaliação é de que ainda há muito o que se fazer para alcançar a Clearing House , um projeto de médio a longo prazo e que deve ser de mercado, e não estabelecido por imposição de cima para baixo.
Enquanto esse momento não chega, a análise é de que o segmento continuará com riscos e sujeito a eventuais novos problemas. Por isso, a recomendação é de que as empresas continuem a atuar deforma prudente, com avaliação criteriosa de suas posições. Até para evitar problemas cujas questões e similaridades datam ainda de 2008, seja em argumentação ou atores desses episódios.
Nosso setor é muito dinâmico, por isso segurança de mercado é uma das nossas prioridades e trabalhamos para aprimorar o que já temos.
E as ações recomeçaram, assim como em 2019, logo depois que a Brasil Comercializadora acionou o Judiciário para não cumprir a obrigação de registrar contratos, e a Argon Comercializadora pediu recuperação judicial. A Agência Nacional de Energia Elétrica abriu processo de consulta pública com proposta que altera os critérios de entrada, de manutenção e de saída de agentes no mercado de energia.
Por sua vez, a Câmara de Comercialização de Energia Elétrica finalizou e apresentou uma nova versão de sua chamada Nota Técnica 3 para aprimoramento de ferramentas que permitam antever possíveis riscos sistêmicos e o nível de alavancagem do setor. De acordo com a CCEE, a ideia é de seguir as melhores práticas que já são trabalhadas no mercado financeiro. Aliás, segundo a conselheira Roseane Santos, que é a responsável por esse assunto na câmara, no quesito segurança, o mercado evoluiu consideravelmente nos últimos dois anos.
“Aprendemos algumas lições com os desafios comerciais de 2019 e hoje estamos muito mais preparados para lidar com situações adversas. Mas o nosso setor é muito dinâmico, por isso segurança de mercado é uma das nossas prioridades e trabalhamos para aprimorar o que já temos e estamos sempre discutindo novas soluções que possam garantir mais eficiência no monitoramento”, diz a executiva.
Fonte: CCEE
Em relação à consulta pública aberta na Aneel sobre os critérios, ela ressalta que se há uma avaliação mais robusta e periódica dos participantes da comercialização, os riscos de ocorrências adversas para o setor são reduzidos. E ainda, com a possibilidade de diminuição de tempo necessário para o desligamento de um agente inadimplente, os impactos de eventuais descumprimentos para o restante do mercado são mitigados.
Concomitantemente, há uma segunda consulta aberta para contribuições que propõe a discussão sobre a possibilidade de criação de garantias financeiras para o MVE, um mecanismo de negociação de sobras para as distribuidoras que até hoje não contava com ferramentas de proteção contra eventuais inadimplências.
“Tanto essas duas Notas Técnicas como a 3.1 são complementares. Certamente, se as propostas desenhadas pela CCEE já fossem realidade, poderíamos enxergar o risco preventivamente e mitigar impactos de situações adversas para a liquidez do setor, o que não é possível com as regras atuais e com as práticas usuais de mercado”, avalia.
Aliás, a NT 3.1 indica a formação de um monitoramento com abordagem prudencial por meio do qual a CCEE receba informações como exposição futura, alavancagem, patrimônio líquido e ativos líquidos, que serão calculados pelos próprios agentes e enviados semanalmente.
Fonte: CCEE
“Estamos conscientes da importância da aplicação da computação confidencial, de criptografias e da adoção de sistemas auditáveis, que serão parte integrante dessa solução. Adicionalmente, as próprias empresas devem publicar mensalmente, em seus sites, algumas informações relevantes como alavancagem e patrimônio líquido em formato padronizado pela Câmara”, acrescenta Roseane.
Além disso, a Nota Técnica sugere um detalhamento da regulação no sentido de descrever o que o mercado considera como condutas anômalas e quais as devidas sanções para cada uma delas, tornando mais clara e transparente essa relação. E ainda, será estimulada a apresentação voluntária do portfólio de contratos dos agentes, resultando, para aqueles que adotarem as boas práticas de segurança de mercado, incentivos institucionais, operacionais e regulatórios.
Ricardo Cyrino avalia inicialmente como positivas as iniciativas. Hoje ele é o CEO da Atiaia Energia, mas em 2019 tinha acabado de assumir a Secretaria de Energia Elétrica do Ministério de Minas e Energia quando ocorreu o problema com a Vega e a LinkX, empresa cuja falência foi decretada pela Justiça nesta semana. O executivo conta que participou de encontros sobre ações que poderiam ser tomadas para atribuir mais segurança de mercado para que aquela situação não contaminasse o mercado.
Em sua análise, dentre o que foi discutido deve ser recuperada alguma proposta que atue na questão das garantias e que estas sejam reais e compatíveis com a operação das empresas. Para ele a ideia original de uma chamada semanal não era a mais adequada, tanto que foi abandonada. Cyrino destaca que a NT 3.1 da CCEE está bastante consistente ao atuar em campo que se tem no mercado financeiro, mas com as particularidades do setor elétrico.
“Abordar garantias financeiras no mercado livre não é algo novo, ainda em 1999, quando eu estava no Asmae esse tema já veio à pauta. Tentamos um desenho baseado em prerrogativas da Cetip, mas o mercado ainda era incipiente. O setor como um todo evoluiu desde então, a ideia não é nova, mas é importante”, avalia.
Abordar garantias financeiras no mercado livre não é algo novo, data de 1999 no Asmae . Tentamos um desenho baseado em prerrogativas da Cetip, mas o mercado ainda era incipiente. O setor como um todo evoluiu desde então, a ideia não é nova, mas é importante.
De acordo com Cyrino, o amadurecimento do mercado vem ocorrendo, e adotar critérios rígidos de entrada, permanência e saída do mercado é uma outra questão relevante. A adoção de mecanismos já aplicados pelo mercado financeiro também, até porque estamos vendo os bancos cada vez mais próximos do setor elétrico. E num futuro, destaca, o caminho deve ser o estabelecimento de uma bolsa de energia.
Essa questão da chamada de margem, lembrou Urias Martiniano Garcia Neto, sócio de Energia Elétrica do escritório Tomanik Martiniano Sociedade de Advogados, não é nova e foi recebida de uma forma ruim. Para ele, o primeiro ponto a ser atacado é o monitoramento, que precisa de adequações e aprimoramento. “Desde que seja feito ao observar a confidencialidade, legalidade, igualdade”, sublinhou. “Aquele ofício da Aneel que apontava comercializadoras de forma aberta foi um erro muito grande da agência reguladora”, ressalta.
O advogado destaca que o ambiente onde são fechados os contratos entre as contrapartes antes de registrar não são alcançados pela CCEE, que só consegue ter a ciência quando são levados ao sistema da câmara. Considera importante existir maturidade do mercado já que os agentes estão em um ambiente de risco. Por isso, uma gestão mais cautelosa nas operações, não realizar uma due dilligence simplificada e avaliar bem sua gestão de risco bilateral são medidas extremamente recomendadas.
“Isso é o risco das partes. Se o contrato não está registrado e validado é necessário aplicar os princípios genéricos de risco bilateral, ou seja, se não está na CCEE está sob risco, não tem como controlar isso”, aponta.
Se o contrato não está registrado na CCEE há risco, mas este risco é das contrapartes e não tem como controlar isso.
Opinião do Mercado
José Antônio Sorge, sócio administrador da Ágora Energia, diz que o objetivo mais à frente deveria ser a criação de uma clearing. Mas avalia que esse momento ainda está longe da realidade brasileira. Em sua opinião, diante desse fator faz-se necessário delinear um caminho e seus passos até esse objetivo. Estabelecer marcos específicos para chegar ao ponto final.
Um desses pontos intermediários, sugere, poderia ser a atribuição de um selo de credibilidade a empresas que cumprissem determinados requisitos que permitissem, por exemplo, compartilhamento de informações como na CCEE ou na BBCE, com a confidencialidade assegurada.
“Assim eu poderia confiar um pouco mais na contraparte, mas claro que isso é um paliativo, não resolverá de vez o problema, porque os riscos continuam. Outro caminho seria o pré-aporte de garantias em centralizadoras para que o agente desse mercado tivesse limites para operar, assim como ocorre no mercado financeiro”, aponta o executivo. Até porque, continua, qualquer limite ex-post não elimina o risco de uma casa fazer operações acima do limite que tem capacidade. O efeito mais imediato dessas situações foi o que ocorreu em 2019, a redução drástica de liquidez.
Clearing é a solução, mas é de longo prazo. Até lá precisaríamos de um caminho traçado com os passos bem definidos até chegar ao objetivo.
O diretor técnico da Associação Brasileira das Comercializadoras de Energia, Frederico Rodrigues, lembra que houve evolução na regulamentação do mercado. Tanto que de 2008 para cá tirou-se o risco da transação do alcance multilateral e limitou eventuais problemas apenas às contrapartes. Quando ocorre algum problema desses, não alcança mais a liquidação do mercado de curto prazo. O caso de 2019 foi o teste que confirmou esse aprimoramento.
A Abraceel posicionou-se contrária às propostas que surgiram em 2019, quando do default de duas comercializadoras. Mas apesar desse posicionamento, relatou o executivo, o setor buscou melhorar o processo de forma a buscar mais segurança para o mercado na forma de uma autorregulação do mercado. E esse processo continua.
Rodrigues conta que a entidade vem trabalhando em estudos cujo o foco é o de implementar mecanismos de identificação de alavancagem das empresas. O mercado financeiro e suas ferramentas podem conter a resposta a essa questão.
“Estudamos as práticas do mercado financeiro, a maneira de termos uma espécie de autorregulação para que empresas conheçam a exposição de suas contrapartes. É um processo demorado e que envolve mais transparência. É bom lembrarmos que o protocolo de Basileia, utilizado pelos bancos, levou algo como 20 a 30 anos para se consolidar. Estamos trabalhando para a educação do mercado, a contraparte deve assumir risco que seja compatível ao seu tamanho”, reconhece.
Estudo sobre alavancagem de empresas está sendo finalizado e iniciaremos em breve sobre garantias financeiras.
Os estudos citados pelo diretor da Abraceel estão relacionados a monitoramento de alavancagem que está em estágio de conclusão. Inclusive, foi apresentado à CCEE e à área técnica da Superintendência de Regulação de Mercado na Aneel. O segundo passo é a contratação em breve de um estudo para a questão das garantias financeiras, para verificar se há oportunidades de aperfeiçoamentos e como implantá-los. “Queremos um ambiente mais saudável e seguro. Não há um sistema que esteja totalmente protegido de crises, mas práticas comerciais saudáveis reduzem os espaços para esse tipo de atuação”, acrescenta.
O CEO da BBCE, Carlos Ratto, lembra que crises ocorrem em todos os mercados, até no financeiro. Mas, avalia que o mercado tem capacidade de absorver essas crises, como ocorreu em 2019, assim como se tem visto em 2021.
De uma forma geral, iniciativas de desenvolvimento do mercado são sempre bem vindas para atribuir mais segurança e transparência para todos. E que, para se chegar a aprimoramentos com essas características, o mercado tem que participar ativamente.
Ratto exemplifica esse avanço quando a BBCE introduziu a curva de preços e o contrato padrão, pontos que ajudam o mercado a ter redução na assimetria de informações. Há ainda o mercado de derivativos que traz mais liquidez ao mercado sem a necessidade de entrega física do insumo. Além disso, essa contribuição, diz, passa ainda pela assinatura de um memorando de entendimentos entre a empresa e a CCEE, para que a câmara utilize a curva de preços para monitoramento.
“O papel do regulador é estar ali atuando de forma preventiva, mas que não atrapalhe os negócios ou inviabilize-os. Dá para basear na experiência do mercado financeiro, principalmente em prevenção. O Banco Central, por exemplo, sabe da exposição dos bancos a vários ativos e com isso pode calcular e monitorar o índice de alavancagem, realizar
stress tests …esse é um trabalho fundamental”, explica.
O executivo que tem larga experiência no mercado de capitais afirma que há questões do mercado financeiro que não se aplicam ao setor elétrico, pois são atividades distintas. Uma delas é a questão das garantias, afinal as comercializadoras são empresas não financeiras e não possuem a mesma capacidade de corretoras de valores. “Essa solução de apenas copiar e colar uma solução, não sei se funciona”, comenta.
Para ele, o setor deverá caminhar para a bolsa, inclusive cita que a BBCE poderia ter esse papel, mas que devem ser respeitados os momentos. Atualmente, não há capacidade no país para esse passo, é necessária uma evolução maior do mercado. Se houvesse a clearing hoje, a margem a ser aportada poderia se aproximar de 100% do valor da operação. Não há volatilidade de preços quando o PLD está no teto, pois esse é o limite do valor, então não há muito espaço para variação, que é um fundamento básico. Para resolver questões como essa é necessário atuar, por exemplo, na formação do preço do PLD.
Mercado brasileiro ainda está longe da clearing, é necessário maior desenvolvimento, aumentar número de agentes para chegarmos à bolsa de energia. As chamadas de margem hoje seriam muito elevadas.
Outro fator é o número de participantes do mercado. Com mais agentes, a liquidez aumenta e a margem pode ser reduzida. Isso porque há um componente para o cálculo da margem, que é o tempo necessário para sair de uma posição quando não há depósito de valor por uma contraparte. Então, o valor aumenta com menos agentes, pois o tempo de saída aumenta consideravelmente e é necessário cobrar pelo risco.
“Somos a favor do desenvolvimento do mercado. A CVM e o BC fazem esse trabalho e está em linha com o que o mercado entende que é bom para todos, supervisionando na medida certa. E nessa consulta pública da Aneel estamos contribuindo para entender como ajudar o mercado a atender essas exigências”, comenta o CEO da BBCE.
Visão jurídica
Em paralelo às discussões sobre os aprimoramentos, a conclusão é de que o problema deste ano e dos outros anos é de gestão das partes. Outro item ouvido pela reportagem da Agência Canal Energia é a educação do mercado. Há um fator comum em todos os maiores eventos registrados, que é a dificuldade em identificar os contratos das partes e quem está vendido e comprado.
Mas, na visão de advogados, apesar desse cenário, a Aneel extrapolou seu papel ao abrir no ofício nome de empresas. O estado é liberalista e é preciso observar a liberdade das partes em negociarem. “A Aneel é muito importante, a melhor agência reguladora do país, mas há erros. Um desses foi pedir informações de comercializadoras dessa forma, que expôs as empresas que vivem de sua credibilidade e de relacionamento, e isso sem nada de concreto. Errou nesse ponto, deveria ser guardada a confidencialidade”, avalia Rafael Gagliardi, sócio da área de Contencioso e Arbitragem do Demarest Advogados.
Rosi Costa Barros, sócia em Energia do Demarest acrescenta que a maior parte das comercializadoras atua de forma séria no mercado. Esse ofício que agora corre sob sigilo foi desnecessário. Casos como o visto no mês passado denotam um método de trabalho em que já há uma previsão de operar a descoberto, e que enquanto funciona tudo bem. “Quando há problema e está muito exposto, [o agente] dá o calote, pede recuperação judicial. Olha, me arrisco a dizer que até a RJ está no business plan às vezes”, diz a advogada.
Enquanto houver assimetria de informações há um risco que o consumidor nem sabe que está correndo. E isso pode se tornar um problema no futuro, ao passo que o mercado livre vem sendo aberto e os consumidores novos apresentam nível de organização cada vez menor, Rafael Gagliardi, do Demarest Advogados.
“E quem é que vai querer ir contra uma empresa em RJ que não possui ativos? Gastar dinheiro com essa disputa não vale a pena”, acrescenta Gagliardi. Para ele, enquanto houver assimetria de informações há um risco que o consumidor nem sabe que está correndo. E isso pode se tornar um problema no futuro, ao passo que o mercado livre vem sendo aberto e os consumidores novos apresentam nível de organização cada vez menor, por serem empresas de menor porte e que poderão de uma hora para outra ficarem expostas. “Precisa modernizar o mercado, enquanto não acontecer isso veremos esses sobressaltos”, finaliza.